CIDADE NATAL
Eu moro no interior da Bahia, numa pequena cidade, muito famosa pelas festas juninas. O nome da cidade é Amargosa, foi batizada com esse nome devido ao assassinato hediondo de pombas, cometido por caçadores da região, que quando experimentaram a carne, sentiram a amargura do crime jamais perdoado. Aqui também já mataram muitos animais sagrados como asnos. A cidade é boa para viver, mas tem data de validade. Você experimenta licores doces e amargos e uma generosidade sem fim. Os turistas são os que mais gozam da cidade. Amargosa é movimentada durante o dia, mas às sete da noite, nenhuma “alma viva” nas principais ruas. Não havia violência nenhuma. Os assaltos a bancos tinham transmissão ao vivo pelo rádio. Eu amava assaltos. Quem estava no banco, naquela hora, ficava logo famoso.
O homem mais rico de Amargosa é
um senhor que aparenta uns setenta anos bem vividos. Ele é dono de um grande
supermercado, e todos os dias, usa a mesma calça jeans surrada com camisa quadriculada
de botão. E anda pra lá e pra cá, na maior solidão. Neste próximo Natal estará
realizando o maior sonho de sua vida: presentear Amargosa com um shopping do
tamanho de São Paulo. Os moradores não parecem muito animados com o
vasto império banhado a ouro. O aparente desinteresse reside no fato de a renda
da população ser um tanto baixa, e não sabem ainda de que modo poderiam
contribuir com a dádiva. Os curiosos do
bairro resolveram fazer uma visita, antes da inauguração, e se perderam no
estacionamento subterrâneo dos aviões. Eu só espero desse shopping a sala de
cinema para assistir o tal do “Bacurau” – pensando bem, o shopping está com a
cara do “Coringa”, o filme.
Amargosa é cheia de dotes. O
idealizador do jardim da cidade recriou, possivelmente sem saber, os jardins de
Luís XIV na França. O jardineiro poda as árvores em forma de falos, ou seja, o
observador mais atento vê paus duros bem próximos à igreja do Bom Conselho.
Além do jardim, Amargosa tem um bosque verde no imaginário dos habitantes, pois
um antigo prefeito substituiu a grama por um cimento rosa choque, deixando o
bosque com a cara da Rita Lee.
O melhor São João do Nordeste se encontra
aqui, quando o céu fica mais azul na noite de São João, com tantas bombas
estouradas e chuviscos dourados, que minha vó até rezava de medo, na hora de
acender a fogueira, na porta de minha casa. Medo de São João acordar do sono
profundo, pois se isso acontecesse o mundo estava acabado. Eu tinha medo disso,
e só soltava “chuvinha” para não fazer zoada. Quando descobri que o coitado do
São João morreu decapitado, senti uma doce ternura ao lembrar dele, assando
milho no espeto na brasa da fogueira.
Sou muito grato à minha cidade
natal, ganhei de presente dela uma universidade que se instalou quase no fundo
do meu quintal. Agora, recém-formado em Letras, parti o ovo e ganhei asas, pois
quem não sonha alto, não sai do chão. E por falar em santo, nasci na Santa Casa
de Misericórdia, não há outro nome de tamanha beleza, antiga maternidade da
cidade. Por acaso do destino, nos últimos dias, a biblioteca foi transferida
para esse casarão antigo, e numa visita inédita descobri que os meus escritores
preferidos estão no quarto onde ficava a incubadora dos bebês amargosenses. De
súbito, uma lágrima manchou a tinta na primeira página aberta.
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