A FOME




Mamãe, eu matei o amor da minha vida com um tiro na testa. Saiu uma fumaça fresca da cratera que a bala desenhou, respirei aliviado e quando beijei seus lábios pela última vez, brotou uma flor degenerada expelida pela boca. A pele ficou pálida e um vermelho irracional banhou seu corpo nu na cama cheia de pétalas violetas. Ah, mamãe, é um aconchego matar; matar de amor, de ternura, matar até sentir o cheiro da morte. Tudo começou nas preliminares.
Combinamos comer um ravióli na sexta-feira, tomei um banho morno, a água do chuveiro esfriou de repente. O rádio tocava Love Kills, de Fred Mercury. Sai do banho, fumei um Black ainda na porta do banheiro, e passei o lápis nos olhos. Imaginava como esse desejo ganhava forma. O pensamento pairava: matar na cama, aquele homem que revirou minha vida pelo avesso. Apaguei todas as luzes da casa e desci as escadas. Ao abrir a porta descobri a lua radiando feixes prateados sobre a calçada. O vento frio como a brisa do mar batia forte no meu peito. Num lapso de segundo entrei no carro. Acelerei com violência deixando rastros.
As ruas estavam vazias. Não havia iluminação noturna. O farol e a lua iluminavam o caminho até a Aurora Boreal. A casa era amarela, à beira de um precipício. Estacionei o carro e tive que colocar pedras nas rodas, por medo de perder meu automóvel das antigas, pintado de laranja. Ele me esperava na porta com um copo azul reluzente e um iphone nas mãos. Pediu que eu entrasse. Entrei. A casa estava à meia luz e ele me levou até à biblioteca de seus aposentos. O livro “Édipo Rei, de Sófocles,” não estava alinhado na estante curta, de poucos livros. A hora se aproximava. Pedimos ravióli e, em vinte minutos, o entregador anunciava na campainha. Fui receber a iguaria italiana. Joguei-a na mesa da cozinha e ele silencioso na sala esperando a morte.
 A outra fome estava alucinante, nos devoramos, com pressa e desejo. Da cozinha para sala, do quarto à varanda. A casa estava tomada. A fera indomável, abominável, habitava em nossos corpos de sucos derramados. Mamãe, tu me fizeste descendente da árvore frutífera. Mamãe, não permita esta doce morte. Sinto medo, mamãe. Ele vociferava, vociferava. E como dois animais marinhos voltamos à superfície em busca de ar. Deslizamos novamente. Não era água. Estávamos desaparecendo em meio a areia movediça e o abismo em meus olhos se expandia, expandia. Puxei a arma da bolsa ao lado da cama e atirei.
 Mamãe, sinto desespero. O quarto estava cheios de anjos e monstros. Salva-me deste paraíso perdido. Clamo à vida, retorno à infância. Meu corpo esfriou ao lado dele. Sinto uma falta, mamãe, de quem será a autoria e a culpa deste crime, o erro? Tudo desmoronava aos poucos numa overdose; numa neurose. Erotismo em ato de morte. Na cama com outro homem, eu estava preso a uma coleira de cachorro. A coleira era invisível e a minha mamãe controlava o ritmo e o passo a longas distâncias.

Ricardo Neto

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