A NOVIDADE

    Era noite de segunda-feira. A neta de Dona Deusinha da Ressurreição fez um bolo cor de rosa para comemorar o aniversário de noventa e oito anos da vozinha mais querida da família. Precisamente às oito e meia da noite, tudo já estava organizado; os vizinhos convidados e as crianças rodeavam a mesa, fitando os olhinhos de bolinha-de-gude nas bexigas vermelhas decoradas no alto do arco. Aquele imenso bolo retangular com duas velas brancas fincadas, não despertava a atenção da meninada.
    A neta morava em frente à casa da vovó, e preparou a surpresa na sua casa, escondendo todo o ritual que se repetia pontualmente ao longo dos anos. Quando a família e os vizinhos estavam reunidos atrás da porta e outros colados pelas paredes da sala, a neta, finalmente, foi chamar a vovó com o pretexto de consertar o cano da pia. Luzes apagadas, silêncio absoluto. Lá vem a velhinha atravessando a rua, a luz do poste apagada e a penumbra do nevoeiro a fez tropeçar nos paralelepípedos. Ela se apoiava nas mãos da neta que lhe conduzia à casa, onde a escuridão lhe esperava em grande assombro.
   Quando abriu a porta, os aplausos desenfreados dos “parabéns pra você" sendo cantado num descompasso sem arranjos. O neto mais jovem, de onze anos, gritava para alguém acender a luz, pois todos ainda (mais empolgados que a aniversariante) cantavam no escuro. Deusinha sorria, piscando os cílios de pressa, na tentativa de dilatar a pupila para enxergar melhor, enquanto a neta ajustava o lenço de bolinhas azuis em sua cabeça. Quando finalmente alguém acendeu à luz, dona Deusinha já estava colada na parede branca no centro do arco das bolas vermelhas e continuava a sorrir para os celulares. Os convidados entregaram os presentes: meias, taças, conjunto de vasilhas plásticas e muitas peças íntimas embrulhadas em saquinhos, abraços, beijos e mais aquela variedade de felicitações que todo aniversário solicita. O netinho observava a delicadeza da vovó com os convidados durante os quinze minutos de festividade. 
    As crianças se espalharam pela rua, os vizinhos correram para suas casas com os pratinhos de bolo na mão, e a provedora da festa pediu para o neto levar a vovó de volta à sua casa para ela terminar de assistir à novela “Celebridade”, de Gilberto Braga. O menino disse a vovó, enquanto atravessavam a rua:
    – É tão bom comemorar seu niver, vovó Deusa, que passamos o dia todo arrumando o bolo e as bolas. A senhora desconfiou de alguma coisa?
    – Não, meu fi. Sabia de nada não. – Disse a senhora.
    – Sabe de uma coisa, vó? Ano que vem é noventa e nove, e já está perto da gente fazer tudo de novo. – O neto segurava a mão da vovó.
    Deusinha retirou a chave do bolso de seu casaco, abriu a porta, jogou os presentes em cima do sofá, pegou o controle da televisão de cinquenta polegadas, apontou para o aparelho receptor, pressionando o botão Power, ao passo que mordia os lábios com a dentadura e respondeu ao garoto.
    – Nada disso, meu anjo. Ano que vem, vai ter aniversário de novo não.
    O menino abraça a vovó, e diz que terá sim; e o próximo será mais bonito e maior.
    - Não, não... – Respondeu ela olhando para ele cheia de ternura, balançando a cabeça inclinada – em direção aos olhos do garoto – que neste momento lembrava aquele mesmo olhar dos meninos que desejavam estourar as bexigas vermelhas do arco.
    - Por que vovó? Você não gostou do bolo?
    - Não, meu dengo, não é isso; é que ano que vem eu estarei bem morta com fé em Nossa Senhora das Graças. Fiz até promessa para Bom Jesus quando apaguei a vela do bolo.
    E o menino saiu correndo feito um ladrão para espalhar a novidade.


Ricardo Neto

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