A PARTIDA DOS GUARDA-CHUVAS





A
o descer as escadas, o aspirante escritor fecha os olhos por alguns segundos e lentamente abre a porta. Joana entra silenciosa com os passos tímidos e enquanto subia as escadas até o escritório, seguia-o com as mãos no corrimão de aço. Thomas usava uma camiseta branca com a velha jaqueta vermelha. Há dois anos e meio não se viam, afastados de qualquer espécie de contato, se distanciavam cada vez mais. Quando Joana conheceu Thomas na universidade, a amizade que se anunciava era como aquele signo singular da felicidade. E como exercício prático da vida, ela sempre evocava as notas musicais do primeiro encontro, assim que tudo parecia terminado. Thomas aceitou recebê-la depois de um telefonema. O silêncio no corredor até a entrada no escritório foi interrompido ao sentar-se na escrivaninha.
 –Aceita um café?
 –Pode ser! – Respondeu ela.
Pendurou a bolsa no cabideiro vazio atrás da porta, e olhou para as belas mãos de Thomas, enchendo a xícara vagarosamente. Ele levou o café em suas mãos e sentou-se novamente ao lado dela de frente para o computador, no mesmo momento em que ela puxou uma cadeira confortável, posicionando-a de modo que via seu rosto de perfil, e inspirara o sabor do café de olhos fechados. Era uma dessas tardes de setembro quando a chuva cessa e os raios de sol despontam, aquecendo por poucos minutos as paredes frias dos prédios. O breve calor dessa tarde se estendeu para dentro do escritório, através da janela entreaberta, e o ambiente se iluminou naturalmente. De súbito, ele inclinou o rosto para ela.
– Você está trabalhando? – Perguntou em tom baixo.
– O contrato com a universidade venceu e tive de retornar. É impossível ficar na capital sem dinheiro.
– Compreendo. Tem editais abertos ainda, aqui no interior (Os dois ficaram em silêncio por alguns instantes).
 E pressentindo que se continuasse com esse assunto, algum mal-estar tomaria conta de tudo. Ela pôs a xícara, ainda pela metade do café, na beirada da escrivaninha e sua respiração acelerou, fazendo a voz palpitar.
– Thomas, eu li seu primeiro livro de contos e fiquei muito tocada. Não contive a emoção de pedir o seu número ao Marcos para que você autografasse meu livro hoje.
Agora os dois se olhavam. Ele escutava sorrindo, a crítica da jovem professora de literatura – a sua voz retornava aos tons naturais – que se deslumbrava ao falar dos contos preferidos, enquanto elogiava a criatividade nata do escritor. No escritório, a grande estante de livros recebia a luz dourada do pôr do sol pela vidraça da janela, e Thomas dirigiu-se até à cortina, puxando-a para amparar a curta claridade de todo final de tarde. E sua aparente seriedade se desmanchava em risos fáceis ao ouvir as palavras de Joana, comentando sobre o senso de humor, na medida certa, nas páginas que agora ela lia para ele docemente, tão docemente. Ele retirou os óculos e a convidou agora para que se sentassem nas poltronas perto da janela.
As poltronas estavam dispostas em simetria como se fossem usadas para entrevistas. A amizade daqueles dois retornava ao princípio. Quando se conheceram no início da graduação, Thomas estava solteiro e ela também. Mas algo os impedia de avançar, além da amizade, e todas as teorias formuladas por ela para compreender a inexatidão destruía-se muito fácil. Era evidente que Thomas não tinha outras preferências. Amou uma mulher a qual ele se relacionou durante dois anos e por ciúmes e ausências constantes, terminaram violentamente.
Qualquer ausência involuntária tinha para Thomas o estigma do abandono. A forma dessa ausência era a manifestação de sua persona feminina, ao contrário de Joana que possuía o lado dominante masculino. Ela compreendia os episódios da falta. Thomas vai até a sala, e traz para o escritório um pote cheio de bombons de chocolates que ficava em cima da mesa de vidro. Joana se encolheu na poltrona abraçada com o livro de contos e aceitou os bombons.
– Este conto aqui, veja Thomas, tem muito a ver conosco. – E faz a leitura do trecho comovida:
 – “(...)Estávamos no meio do oceano, flutuantes, nossas mãos unidas. Senti o calor do corpo dele ao se entrelaçar no meu, respirávamos como os seres aquáticos, sentimos a sensação de origem, de retorno ao genuíno mais íntimo de nosso ser. Vimos no céu, os anéis de saturno brilhantes e ígneos, não estávamos na terra, a água se condensava e um recife de corais circundava nossas mãos. Ouvimos sonetos de sereias ressoarem do fundo do mar. Levitamos por leves segundos e nossas retinas transpiravam como as algas marítimas. Ele puxou a minha mão esquerda vagarosamente e mergulhamos unidos, seguindo o espectro da luz branca em direção ao interminável...”
– Esse é o livro que nunca li. – Disse Thomas, com o tom irônico, após ela terminar a leitura.
 – Joana, eu te olhava com sentimentos e você me sufocava com aquelas palavras. Nosso afastamento durante esse tempo foi natural, acontece com todos. – Ela fecha o livro e olha para ele.
– Eu sempre quis ficar calada naqueles momentos! Mas você se refere as quais palavras Thomas? Quais palavras?
- As palavras que caiam da sua boca!
O sol já começava a dissipar seus raios e algumas nuvens cinzentas se formavam ligeiramente lá fora. Joana estava inquieta na poltrona. Ele se levantou para pegar um livro na estante, mas ficou fingindo a procura do livro de costas para ela.  
- Nosso barco estava afundando, Thomas.
- Não existe barco, Joana. Existe a amizade até hoje, olha você aqui de novo, renovando os votos de fidelidade. – Com um leve riso, ainda de costas, e de frente para os livros, inclinou todo o corpo em direção a ela e disse:
– A nossa amizade só depende de você. Por que você nunca compreendeu isso, Joana?
– E o desejo ainda é o mesmo, Thomas?
– O desejo se torna desespero.
Saiu da beira da estante, pegou a caneta na escrivaninha e veio caminhando com as mãos estendidas até a poltrona. Os olhares finalmente se encontraram. Por que até mesmo o olhar se faz ausente entre os amantes. O estranho e obscuro desejo percorria suas veias enquanto se olhavam: ela encolhida, ele em pé, recebendo o seu livro de contos com a mão direita estendida. O elo entre eles era aquele livro de contos. O escritor recebia visitas constantes de amigos, leitores e jornalistas; o cumprimentavam, faziam perguntas bobas e inteligentes, sentia-se rodeado, solicitado, lisonjeado. No entanto, ele sentia a mesma ausência sentida por Joana, e esta ausência era a fonte de sua escrita. A caneta escrevia, neste instante, algumas palavras e o som dos riscos no papel aquecem os sonhos daqueles que amam a eternidade da arte literária. O livro é devolvido para as mãos da dona com a dedicatória do escritor.
Tomada de um impulso repentino, desejou ir embora. Lembrou-se que não poderia demorar mais, inventando algumas desculpas para não continuar a conversa. Sentia a inevitável perda das próximas palavras. Seis horas da tarde e a chuva voltava tão fina, desta vez, que se assemelhava a flocos de neve, mas não era neve. Anoiteceu. Ele desceu as escadas primeiro, ela veio com os passos mais lentos do que na chegada e sem abraços de despedida, atravessou o portal da amizade. 
Na rua movimentada, as pessoas retornavam para suas casas, após a rotina diária de trabalho. Quase não havia carros, pois em cidade do interior tudo é tão fácil e perto. Retirou bruscamente o livro da bolsa para ler o que ele havia escrito na dedicatória. Lendo com os olhos brilhando em lágrimas, imaginou que a expectativa daquela amizade – quando dois seres que pareciam se amar sem saber – era sempre a revelação. Mas concluiu que depois de tantos hiatos, nunca revelaram nada, além de verdades e mentiras entre eles mesmos. Abriu o guarda-chuva vermelho e andou mais depressa no meio da calçada. Do alto da janela do escritório que ficava no primeiro andar, estava ele a observar os guarda-chuvas abertos de diferentes cores e formas indo e vindo por todas as direções, e neste instante, lembrou-se de estar sozinho mais uma vez. 

Ricardo Neto

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