IMACULADO CORAÇÃO





            Nas cidades do interior as crenças e imaginários populares têm uma força atemporal. Dona Lili foi até a casa de Crepício de manhã cedo, pedindo para ser rezada de mau-olhado.
– Seu Crepício, seu Crepício, eu vim aqui para o senhor me rezar...
Ela chamava do portão sem cessar e nada de Crepício responder. A voz de dona Lili era a voz mais engraçada da cidade. Uma voz singular. Os vizinhos ouviam os chamados de dona Lili e corriam para porta espiar a velha borocoxô.
 – Seu Crepício, seu Crepício, eu vim aqui para o senhor me rezar...
Balançava as grades do portão, aumentando o tom da voz que ficava mais cômica à medida que o grave subia.
– Seu Crepício, seu Crepício, eu estou com uma mufina dos diabos. Abre a porta para me rezar pelo amor da Virgem Maria.
O velho Crepício era conhecido como o melhor rezador da região, casado com uma mulher de muito respeito que pertencia ao Apostolado do Coração de Maria. Dona Lili gostava de receber os ramos na casa dele, sentada na sala, olhando para o belo quadro do Imaculado Coração de Maria. Naquele dia, a esposa de Crepício não permitiu a licença da reza; e Crepício, finalmente, saiu na porta para despachar dona Lili.
– Dona Lili, hoje é segunda-feira e eu estou de resguardo. Pode voltar para sua casa. Quarta-feira eu lhe rezo. Aqui não, na sua casa.
Na quarta-feira de tarde, o rezador cumpriu a promessa. Passar os ramos em dona Lili que sofria de quebranto, ou o conhecido, mau-olhado; uma espécie de moleza e tristeza que segundo os mais velhos é causada pela inveja do outro, quando conquistamos alguma coisa nova. Mas qual seria a causa desse mau-olhado de dona Lili, uma senhora tão pobre e mesquinha. Crepício encontrou dona Lili desfalecida, bocejando no sofá e dizia para ele:
– O senhor veio mesmo. Pegue os ramos lá no quintal e me reza, me reza. – a voz bem frágil.
Crepício veio com os ramos na mão, rezando o Pai Nosso; e junto ao sofá, os dois fecharam os olhos.
– Caia por cima de mim, Crepício gostoso.
– Fique quieta dona Lili, respeita a reza sem vergonha. Sou homem direito e casado.
Crepício permanecia de olhos fechados, fazendo o ritual e passava as folhagens sobre o corpo de dona Lili, formando um crucifixo. Quando terminou a reza, os ramos ficaram murchos, quase pegando fogo.
– Como dói meu coração Crepício. Não há jeito para nós dois. – Disse dona Lili, enquanto levantava do sofá. E ele respondeu:
– Repreendido em nome de Jesus, em nome de Maria e José. Dona Lili, se a senhora continuar com essa ladainha toda vez que venho aqui, eu não vou lhe rezar mais. Quantas vezes eu já lhe disse isso? Essa é a última vez. Vou me embora.
Saiu e jogou os ramos murchos no meio da rua.
No outro dia, pela manhã, um vizinho bateu na porta de Crepício.
– Seu Crepício, o senhor soube de dona Lili?
– Não, misericórdia, misericórdia, o que aconteceu? – Perguntou Crepício assustado com as mãos trêmulas.
– Dona Lili sofreu uma queda no banheiro e está em casa toda enfaixada. Os filhos dela já morrerem e quem vai cuidar da bichinha agora?
Crepício saiu correndo para casa de dona Lili e o estado dela parecia grave. Ela estava numa cadeira de rodas e não havia ninguém no mundo para ajudá-la senão Crepício, que rezava ela há vinte anos. Naquele mesmo dia, os dois passaram a morar juntos com a esposa de Crepício, na casa do Sagrado Coração de Maria, até o fim da vida.


Ricardo Neto

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