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Mostrando postagens de novembro, 2019

METAMORFOSE

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                  Quando acordei numa manhã de chuva, avistei do meu quarto uma borboleta imensa na porta da sala. Ela batia as escamas de seda lentamente entre uma parede e outra, e eu levantei assustado. Fui em sua direção para tocá-la e minhas digitais ficaram cravadas. Afastei-me para trás pausadamente. Nunca tinha visto uma coisa daquelas. Corri para cozinha e peguei uma vassoura para espantá-la, mas não havia saídas, pois as janelas estavam trancadas. A borboleta me encarava com seus olhos de jabuticaba e batia as antenas no teto, soprando cinzas opacas. Pensei que poderia ser até uma mariposa, mas não tinha feiura, a sua beleza desejava uma música de violino. A chuva lá fora caia e decidi chamar algum vizinho. Fui até os fundos da casa e um besouro enorme e cascudo estava acoplado na tramela. De repente tive a ideia de colocar fogo nos jornais velhos que ficavam dentro do armário da pia.   Peguei o fósforo em cima do fogão, fiz um calhamaço com os jornais e acendi a chama p

AS CORTINAS

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Meu sonho era ser diretor de cinema. Desde a infância brincava com câmeras feitas de papelão. Eu brincava muito, filmando amigas como personagens de uma novela que só existia na minha imaginação. Infelizmente, nasci no Brasil e não me tornei cineasta. Na juventude, antes da universidade, conheci um amigo que tinha uma câmera CANON profissional e ele me pediu que eu o fotografasse pelos arredores da casa. A partir desse dia me apaixonei perdidamente pela densidade da câmera, o peso, a lente e a leveza da fotografia. E como num passe de mágica muitas pessoas começaram a me solicitar trabalhos fotográficos. Eu, inúmeras vezes, recusava pela insegurança de nunca ter feito um curso para fotógrafo. As minhas primeiras fotos disparadas na objetiva não tinham sequer planejamento de ângulos, e na revelação, ficavam tão graciosas que nem acreditava que foram mesmo feitas por mim. Comprei uma câmera e não parei mais até o dia em que decidi me aceitar como escritor. Abandonei a câmera.

IMACULADO CORAÇÃO

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            Nas cidades do interior as crenças e imaginários populares têm uma força atemporal. Dona Lili foi até a casa de Crepício de manhã cedo, pedindo para ser rezada de mau-olhado. – Seu Crepício, seu Crepício, eu vim aqui para o senhor me rezar... Ela chamava do portão sem cessar e nada de Crepício responder. A voz de dona Lili era a voz mais engraçada da cidade. Uma voz singular. Os vizinhos ouviam os chamados de dona Lili e corriam para porta espiar a velha borocoxô.   – Seu Crepício, seu Crepício, eu vim aqui para o senhor me rezar... Balançava as grades do portão, aumentando o tom da voz que ficava mais cômica à medida que o grave subia. – Seu Crepício, seu Crepício, eu estou com uma mufina dos diabos. Abre a porta para me rezar pelo amor da Virgem Maria. O velho Crepício era conhecido como o melhor rezador da região, casado com uma mulher de muito respeito que pertencia ao Apostolado do Coração de Maria. Dona Lili gostava de receber os ramos na casa dele

CIDADE NATAL

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         Eu moro no interior da Bahia, numa pequena cidade, muito famosa pelas festas juninas. O nome da cidade é Amargosa, foi batizada com esse nome devido ao assassinato hediondo de pombas, cometido por caçadores da região, que quando experimentaram a carne, sentiram a amargura do crime jamais perdoado. Aqui também já mataram muitos animais sagrados como asnos. A cidade é boa para viver, mas tem data de validade. Você experimenta licores doces e amargos e uma generosidade sem fim. Os turistas são os que mais gozam da cidade. Amargosa é movimentada durante o dia, mas às sete da noite, nenhuma “alma viva” nas principais ruas. Não havia violência nenhuma. Os assaltos a bancos tinham transmissão ao vivo pelo rádio. Eu amava assaltos. Quem estava no banco, naquela hora, ficava logo famoso. O homem mais rico de Amargosa é um senhor que aparenta uns setenta anos bem vividos. Ele é dono de um grande supermercado, e todos os dias, usa a mesma calça jeans surrada com camisa quadricula

MUNDOS CIRCULARES

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   Você se lembra do nosso beijo pela primeira vez, no parque de diversões, sentados na roda gigante em São Francisco? A vida se iniciou de uma forma mais plena para nós dois. Depois daquela noite de claridade opaca, assistindo ao céu estrelado do alto daquelas rodas iluminadas que giravam em torno do mesmo eixo – suspensas em duas torres verticais – os anos se passaram tão depressa, e lá no fundo a gente sabe que ainda resta alguma coisa, ainda sem nome, a qual nos prende dentro de um círculo invisível nos fazendo girar até os nossos corpos se chocarem brutalmente. Por todas às vezes que tentamos fugir desse anel gigante, acende-se uma lâmpada de intensidade tão forte que o não-retorno para dentro do círculo pode cegar os nossos olhos por toda a eternidade. O medo é tão intenso que a força gravitacional da Lua nos empurra em direção a ela. Não se engane assim, a lua sabe de todos os segredos e caímos, sem perceber, novamente, dentro do círculo. Dentro dessa esfera circular nossos co

PEQUENAS COISAS

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    Mamãe foi traída pelo meu pai a vida inteira até meus vinte anos. Ele tinha uma amante e constituiu com ela a segunda família. Eu fiquei com minha mãe. Pobre e mal-amada. Acompanhava ela todos os dias para casa da Família Afonso Martins. Trabalhava na cozinha e tinha um quartinho só para ela, no fundo da mansão. Toda tarde eu ia para o quartinho destinado à minha mãe. Meu sonho era dar uma bolsa para ela no Natal. Guardava suas pequenas coisas dentro de uma sacola de plástico miúda. Um dia eu peguei-a em cima do guarda-roupa. Ela deixava no alto para eu não roubar as moedinhas do pão. Quando abri a sacolinha, tinha um pente, uma presilha de cabelo e notas fiscais de supermercado. Muitas notas e uma caneta bic. No fundo da sacola, o batom vermelho. De tão velho ficou todo roxo. Era a sua única maquiagem. De frente para o espelho do guarda-roupa, girei a cápsula do batom e passei em meus lábios. Até hoje tenho as marcas. Ricardo Neto

A FOME

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Mamãe, eu matei o amor da minha vida com um tiro na testa. Saiu uma fumaça fresca da cratera que a bala desenhou, respirei aliviado e quando beijei seus lábios pela última vez, brotou uma flor degenerada expelida pela boca. A pele ficou pálida e um vermelho irracional banhou seu corpo nu na cama cheia de pétalas violetas. Ah, mamãe, é um aconchego matar; matar de amor, de ternura, matar até sentir o cheiro da morte. Tudo começou nas preliminares. Combinamos comer um ravióli na sexta-feira, tomei um banho morno, a água do chuveiro esfriou de repente. O rádio tocava Love Kills, de Fred Mercury. Sai do banho, fumei um Black ainda na porta do banheiro, e passei o lápis nos olhos. Imaginava como esse desejo ganhava forma. O pensamento pairava: matar na cama, aquele homem que revirou minha vida pelo avesso. Apaguei todas as luzes da casa e desci as escadas. Ao abrir a porta descobri a lua radiando feixes prateados sobre a calçada. O vento frio como a brisa do mar batia forte no meu

MEIA LUZ

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                                                                                                                                                                        As senhoras reuniram-se na frente de suas casas, e as crianças em estado de euforia comemoravam a sensação de uma hiper-realidade da rua, quando caiu a noite, e veio uma súbita queda de energia. Era uma rua comprida e sem saídas. As casas de fachadas iguais diferiam nas cores e na disposição das portas e janelas. No entardecer daquela tarde, o sol iluminou o centro da rua com uma luz vermelha que foi encurtando-se em poucos minutos até sumir.      As luzes dos postes acenderam-se sozinhas pontualmente às seis horas. Naquele horário, chegavam em casa os homens que trabalhavam nas fábricas e nas pedras; e as mulheres das casas de famílias bem dotadas. Elas andavam apressadas na calçada e antes de chegarem à porta de suas casas, resmungavam com os filhos que brincavam por ali.      O menino de cab

A PARTIDA DOS GUARDA-CHUVAS

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A o descer as escadas, o aspirante escritor fecha os olhos por alguns segundos e lentamente abre a porta. Joana entra silenciosa com os passos tímidos e enquanto subia as escadas até o escritório, seguia-o com as mãos no corrimão de aço. Thomas usava uma camiseta branca com a velha jaqueta vermelha. Há dois anos e meio não se viam, afastados de qualquer espécie de contato, se distanciavam cada vez mais. Quando Joana conheceu Thomas na universidade, a amizade que se anunciava era como aquele signo singular da felicidade. E como exercício prático da vida, ela sempre evocava as notas musicais do primeiro encontro, assim que tudo parecia terminado. Thomas aceitou recebê-la depois de um telefonema. O silêncio no corredor até a entrada no escritório foi interrompido ao sentar-se na escrivaninha.  –Aceita um café?  –Pode ser! – Respondeu ela. Pendurou a bolsa no cabideiro vazio atrás da porta, e olhou para as belas mãos de Thomas, enchendo a xícara vagarosament

O INSPIRADO

- Mamãe, quem escreveu a Bíblia? Perguntou a criança de nove anos. - Os apóstolos de Deus, homens sábios, meu filho.  A criança ainda insatisfeita recria a pergunta: - E como esses homens sábios souberam como Deus fez a terra e os animais, se eles ainda nem existiam aqui? A mãe, meio cansada, responde assim: - Filho, eles são homens inspirados por Deus. A criança não entendia o significado desta palavra " inspirados" e guardou-a no seu inconsciente. Mais tarde, na vida adulta, quando ao sentar-se na escrivaninha numa tarde de setembro para concatenar a ideia de seu novo livro, veio à consciência aquele episódio da infância e disse a si mesmo: - Sou um homem inspirado por Deus. E começou a escrever... Ricardo Neto

O HOMEM QUE CHORA

Primeiro uma lágrima saiu do olho esquerdo e percorreu sem pressa a sua face, descendo a linha do horizonte até os lábios. Enquanto sentiu o sabor da água do mar, a outra lágrima descia, desenhando o mesmo caminho. Recordou-se daquela queda na calçada que feriu seus joelhos na rua da infância. Chorou e veio correndo para casa pedir socorro a mãe. Ele sentou-se na cadeirinha amarela, e ela clareou a terra e o sangue da ferida no joelho, com a bolinha de algodão umedecida na água borbulhante. Passou tantos anos e hoje sentiu o impacto de outra queda, desta vez, não é possível ver onde está a ferida. Parece ser a mesma queda do homem que alimenta os pombos na praça e quebra as duas pernas. E a mãe ainda estava lá com a mesma ternura do passado, só que agora cuidava do seu corpo inteiro. Ricardo Neto

DO OUTRO LADO DA VIDA

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Sem o sol, aquela noite parecia o dia. O menino na areia da praia caminhou na direção da lua. Avistou um avião que diminuía de tamanho à medida que descia, e de repente, imaginou pegá-lo num salto; mas o avião subia e na sua queda não mais tocou a areia. Tudo era neve fria. A vida do menino se passava entre a terra, o mar, o vento e o pôr do sol nas nuvens, mas certa manhã acabou caindo em armadilha humana. Quando acordou do profundo sono lembrou-se que estava no sonho de um pássaro que morava numa gaiola à beira de sua janela. Ricardo Neto

A NOVIDADE

    Era noite de segunda-feira. A neta de Dona Deusinha da Ressurreição fez um bolo cor de rosa para comemorar o aniversário de noventa e oito anos da vozinha mais querida da família. Precisamente às oito e meia da noite, tudo já estava organizado; os vizinhos convidados e as crianças rodeavam a mesa, fitando os olhinhos de bolinha-de-gude nas bexigas vermelhas decoradas no alto do arco. Aquele imenso bolo retangular com duas velas brancas fincadas, não despertava a atenção da meninada.     A neta morava em frente à casa da vovó, e preparou a surpresa na sua casa, escondendo todo o ritual que se repetia pontualmente ao longo dos anos. Quando a família e os vizinhos estavam reunidos atrás da porta e outros colados pelas paredes da sala, a neta, finalmente, foi chamar a vovó com o pretexto de consertar o cano da pia. Luzes apagadas, silêncio absoluto. Lá vem a velhinha atravessando a rua, a luz do poste apagada e a penumbra do nevoeiro a fez tropeçar nos paralelepípedos. Ela se apoia